No dia 17/3 foi lançado o livro SUS e Estado De Bem-Estar Social, de Nelson Rodrigues dos Santos, em São Paulo. No evento, sanitaristas e professores de Saúde Pública debateram com “Nelsão” a importância de sua nova obra e refletiram sobre os futuros possíveis do Sistema Único de Saúde.
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Nelson Rodrigues dos Santos em entrevista a Gabriela Leite
Para transformar o SUS, é preciso compreendê-lo a fundo. Uma das maneiras de entender como ele se formou e por que nunca chegou a ser implementado de acordo com seu projeto original é escutando alguns dos personagens mais importantes na sua criação. É justamente essa a importância do novo livro de Nelson Rodrigues dos Santos, chamado SUS e Estado De Bem-Estar Social, que foi lançado na última sexta-feira, 17/3. É também com esse objetivo que o Outra Saúde publica, hoje, a segunda parte da entrevista com o autor.
Na primeira parte, que você pode ler aqui, “Nelsão” traça uma breve história dos anos que antecederam o SUS. O mestre descreve a grande efervescência política dos anos 1980, a consciência política que se formou na sociedade para derrubar a ditadura e a sensação de que a justiça social precisava ser alcançada. Naquele momento em que se refletia sobre que novo Brasil devia ser construído, o movimento sanitarista brasileiro também dava grandes frutos.
Nelson explica que, com a urbanização acelerada e a pauperização da população, as periferias viraram lugares de enorme tensão. Tornaram-se, então, laboratórios para a construção da Atenção Primária à Saúde à moda brasileira. Sanitaristas que estudavam modelos de sistemas de saúde europeus uniram-se a prefeituras que enxergavam a urgência da mudança e começaram a construir as bases do que viria a ser o SUS.
Esse espírito e essas ideias confluíram na assembleia constituinte, e daí nasceu o Sistema Único de Saúde, na Constituição de 1988. Mas algo também se movia, mundo afora, em sentido contrário. O neoliberalismo chegou atrasado ao Brasil, mas ainda assim teve efeito devastador. O SUS, que estava pronto e poderia levar a saúde brasileira a outro patamar, foi sabotado desde o seu nascedouro.
Nelson aponta cinco grandes investidas ao sistema público de saúde brasileiro. Quatro deles atravessaram todos os 34 anos da democracia brasileira, tanto em governos do PSDB, quanto do PT, e também sob Michel Temer e Jair Bolsonaro. São: o subfinanciamento, o desfinanciamento, a não realização de uma reforma administrativa para transformar a gestão do sistema e o contínuo incentivo ao setor da saúde de mercado. O quinto elemento foi o chamado “teto de gastos” pós-golpe de 2016.
Essa segunda parte da entrevista com Nelson é elemento importantíssimo para compreender por que chegamos onde estamos. Ele explica como funcionam essas cinco puxadas de tapete que fizeram prosperar a saúde de mercado e minaram as possibilidades de o SUS concretizar suas três diretrizes de fato. Hoje temos a saúde universal, mas ela ainda falha em ser integral e equitativa.
Na abertura do livro SUS e Estado De Bem-Estar Social, o professor da e Saúde Coletiva da Unicamp, Gastão Wagner, escreve: “A esperança do professor Nelson emerge em cada página deste livro, de modo incansável, quando analisa os problemas sempre buscando renovar as estratégias de resistência e de avanços na batalha contra a desigualdade, por um SUS público e pela radicalização da democracia”.
Também nesta entrevista, que escancara tantos desafios, há um fio de esperança mobilizadora. Nelson enxerga os cinco grandes entraves e assegura: o SUS só está vivo graças à chama de luta política que foi acesa nos anos 1980 – e ainda não se apagou. É preciso aproveitá-la, mantê-la ardente, para que as transformações necessárias sejam alcançadas. Essa pode ser a tarefa da luta pela democracia hoje, em tempos sombrios – eis a tocha passada por “Nelsão” para as novas gerações.
Fique com a segunda parte da entrevista.
A segunda parte da minha reflexão diz respeito aos anos após a Constituição de 1988. Para fins de análise, há cinco enfoques que podem ser destacados. São todos pontos negativos, investidas contra o SUS que explicam por que o sistema tem grandes falhas até hoje – apesar da forte resistência.
O primeiro que eu colocaria é o subfinanciamento federal. Logo depois da Constituição ter sido aprovada, em 1988, já nos anos de 1989 e 90, o governo surpreende afirmando que não investiria a mais na saúde – pelo contrário, se possível começaria a retrair a verba. Essa foi uma estratégia federal assumida durante os 34 anos do SUS, desde 89 até os dias de hoje.
Essa retração orçamentária federal coloca pode ser medida e comparada analisando a porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB). No mundo inteiro, o maior indicador de financiamento da Saúde é a porcentagem do PIB que vai para o sistema público. Nos países europeus e em outros com sistemas estáveis e bons, como Canadá e Japão, o gasto público é de 7% a 8%. No Brasil, essa porcentagem manteve-se sempre a cerca de 3,8% – por volta da metade dos países desenvolvidos.
Essa é uma estratégia federal que não dependeu de partido nem de governo, foi adotada por todos eles. E esse subfinanciamento pode ser visto também num número bastante impressionante que é o gasto per capita. Se pegar todo o dinheiro público usado para a Saúde e dividir pelo número de habitantes da população, o resultado brasileiro é 4 a 5 vezes menor que o desses outros países. Esses números são bem contundentes do ponto de vista do financiamento federal. Não adiantou estados e municípios investirem mais, durante essas três décadas foi colocado muito mais dinheiro por esses outros entes, mas o gasto federal retraiu consistentemente, mantendo os números estáveis.
O segundo ponto é consequência desse, mas diz respeito ao próprio financiamento do SUS. Trata-se do desfinanciamento. Ao contrário dos sistemas públicos de saúde europeus, dentro do SUS, 65% das internações hospitalares no Brasil são feitas em hospitais particulares. Quer dizer, em vez de incentivar e investir em hospitais públicos de boa qualidade, o SUS desinveste. O desinvestimento federal impulsionou o desinvestimento na construção de mais hospitais e colocou dinheiro na contratação de hospitais privados para atender o público. Entre todas as internações pelo SUS, 65% se dão em hospitais privados contratados.
Em termos dos chamados exames e tratamentos auxiliares, algo que dá muito mais dinheiro que internação, onde estão as tecnologias de saúde mais caras e sofisticadas, mais de 90% é contratado do mercado pelo SUS. É ali onde a própria produção capitalista mais apropriou tecnologia e mais investiu – e onde o desinvestimento federal foi ainda maior.
Outra consequência do desinvestimento federal são os recursos humanos de saúde. Diz respeito à abertura de concursos públicos para selecionar e treinar bons profissionais, como acontece em sistemas públicos de saúde europeus. Também isso foi retraindo no Brasil, e hoje, 65% dos profissionais de saúde que trabalham no SUS são fornecidos por empresas privadas. E eles são subremunerados, para caber no orçamento público encolhido. Ao diminuir o investimento público, o SUS não pode contratar e pagar bons salários a seus próprios profissionais de carreira, então é obrigado a contratar empresas que pagam pior.
A última das consequências do desinvestimento é a própria gestão dos serviços públicos, de hospitais, laboratórios e até Unidades Básicas de Saúde. Ao longo do tempo, elas foram deixando de ser geridas por diretores públicos. Aí surgem gestores privados, e os mais conhecidos são as Organizações Sociais (OSs). Hoje, no Brasil, 73% das unidades públicas, desde unidades básicas até hospitalares, são geridas por entes privados contratados pelos governos.
Assim se dá a privatização por dentro do SUS, causada pelo desinvestimento federal.
O terceiro ponto se refere a um acontecimento de decisão política do governo federal, na década de 1990. O governo de Fernando Henrique Cardoso teve a iniciativa de fazer uma grande reforma administrativa do Estado Brasileiro – até criou um ministério para isso. Passado quase um ano dessa reforma, qual foi o resultado? Uma vasta privatização de instituições, e mesmo parte da gestão pública – não só da área de Saúde, mas em todas as outras.
No papel, a reforma administrativa que foi aprovada pelo Congresso Federal tinha dois grandes componentes: a privatização e a “reforma da gestão pública”, tendo em vista uma melhora na eficiência. Mas essa segunda parte nunca foi concretizada. Faltou dar o passo seguinte, que era tornar a gestão pública mais eficaz e mais moderna.
Na Saúde, isso foi tão drástico que acarretou até num pedido de demissão de dois ministros: em 1993, Jamil Haddad, e em 1996, Adib Jatene. Ambos se demitiram por perceber que, com a reforma pela metade, com o desinvestimento e o subfinanciamento federais, não seria possível construir o SUS como ele havia sido pensado, segundo a Constituição.
Em quarto e penúltimo lugar entre os retrocessos e obstáculos ao SUS foi o financiamento e as ajudas concedidas à saúde de mercado. O setor privado tem o nome oficial de “suplementar”. Os planos e empresas de saúde, que são hoje centenas, atendem apenas 25% da população – que vai desde pessoas que pagam planos muito baratos até os da elite, que chegam a custar mais de 10 mil reais por mês. Outros três quartos dos brasileiros não têm condições de comprar nenhum plano ou serviço privado, por mais barato que seja.
Esses incentivos do governo federal para o mercado de saúde se dão por meio de injeções de recursos públicos – a principal se chama renúncia fiscal. O Brasil não cobra impostos dessas centenas de empresas, além de não cobrar imposto de renda de pessoas físicas que pagam plano de saúde.
Esse ponto expõe claramente a puxada de tapete que o governo federal dá no SUS há 34 anos. O incentivo é tão volumoso que a soma das renúncias fiscais federais para essas centenas de empresas de planos privados dá um valor maior que a soma de todo o lucro líquido declarado por elas. Enquanto se retrai o orçamento do SUS consistentemente ao longo de três décadas, abre-se caminho para o crescimento do setor privado.
Eu gostaria de deixar claro que esses quatro primeiros obstáculos que listei, que o governo federal impõe ao SUS, foram mantidos por todos os governos e coalizões partidárias, desde o início da Nova República.
Já a quinta e última pancada federal no SUS é mais recente, teve início no final de 2016, com a Emenda Constitucional 95, que criou o chamado “teto de gastos” que estrangulou investimentos sociais, aprovada com suporte do governo de Michel Temer. Foi mais uma medida para retrair os recursos federais destinados ao SUS.
Agora, gostaria de elaborar duas grandes conclusões finais. A primeira consiste em reforçar que essas estratégias atravessaram todo o período democrático, independente de quem ocupava o governo. Esse é um debate que está acontecendo e deveria estar posto para toda a militância política, todas as entidades como Abrasco, Cebes, a imprensa da área da saúde e principalmente toda a sociedade brasileira. É preciso que haja compreensão da força negativa que é posta contra os direitos da população durante os 34 anos do SUS.
A outra constatação que acho muito interessante é aquilo que falei no início da minha análise (leia aqui a primeira parte): o SUS foi crescendo antes da Assembleia Nacional Constituinte, já estava sendo implementado antes de sua criação – e precisava ter sido acelerado a partir dela. Pelo contrário, os estímulos foram muito menores do que se esperava. A velocidade com que o SUS cresceu nos anos 1980 foi muito maior antes da Constituição do que no pós-1988 – porque o governo federal privilegiou o setor privado de saúde.
Essa constatação precisa suscitar um debate em que a sociedade se reaproprie da luta pelo SUS, ela mesma como ator principal de uma política pública de cidadania. A saúde como bem público, assim como a educação, são conquistas sociais de direito e cidadania, que foram muito potencializadas nos anos 1980. E essas mesmas lutas foram sendo disfarçadas, desviadas por uma estratégia federal a partir da década seguinte.
Agora, é possível fazer uma constatação que acho que pode ser muito interessante Dessas quatro primeiras pancadas que o SUS levou – o subfinanciamento, o desfinanciamento, a reforma administrativa falsa e a proteção ao setor privado suplementar – se qualquer uma for aplicada a qualquer bom sistema de saúde europeu, o que vai acontecer?
Se aplicarmos o subfinanciamento no NHI inglês, o desinvestimento federal no sistema sueco, a reforma administrativa que só serviu para privatizar no sistema canadense, o enorme privilégio do setor privado no sistema francês… O que acontece?
Os sistemas serão destruídos.
É uma comparação que está sendo feita em muitos debates. Como foi que o SUS aguentou tantas pancadas ao longo de 34 anos?
Eu estou entre os que acreditam muito nessa força da população brasileira. Aquele impulso dos anos 1980, há mais de 30 anos, que conquistou de volta a democracia, que derrubou a ditadura e foi capaz de criar uma Constituição de direitos humanos universais, criou uma chama que passa de geração em geração e ainda está presente na sociedade.
Durante todos esses anos, as diretrizes de equidade e de integralidade não estão acompanhando a de universalidade. Esta última está dada, mas as duas primeiras – que resolveria de 80% a 90% das necessidades básicas de saúde, ainda não foram conquistadas pela população brasileira.
Mas dentro do trabalho dos Conselhos Municipais, Estaduais e Federais de Saúde, no trabalho diário das secretarias municipais, essa é uma chama que não foi apagada. Esse sentimento de inclusão social, que é uma chama de esperança, continua habitando a cabeça da população.
Nessa linha que estou formulando, a pandemia foi de fato muito trágica, mas trouxe esse aspecto bom. Ela reacendeu a chama do SUS na cabeça das pessoas – por mais insuficiente que o combate à pandemia tenha sido, foi no sistema público de saúde onde a pandemia foi combatida para valer. Então apesar de tantos desastres, tantas mortes desnecessárias causadas pelo governo federal, o SUS mereceu as esperanças da população.
Mesmo com essa realidade de destruição, a nossa população brasileira ainda mantém a chama do SUS acesa para defendê-lo. Aí reside uma esperança de retomada do movimento em favor dele.
E o novo governo não pode atacar apenas o “teto de gastos”, é preciso superar os cinco obstáculos. Enfrentar o subfinanciamento, o desinvestimento, implementar uma reforma administrativa para fazer a gestão pública mais eficiente, retirar o apoio financeiro para o mercado de saúde… e acabar com a Emenda 95.
Como fazer essa chama aumentar para provocar o governo Lula a fazer mudanças reais?
Isso vai depender do grau de politização e orientação que vai haver nos debates em relação a esse governo. Vamos ter que continuar enfrentando essas coisas que coloquei. O mercado de saúde também existe na Europa, no Canadá e nos países orientais, mas esse mercado abrange entre 10% e 15% da população. Os fregueses são apenas a classe média alta e a elite social.
No Brasil, com essa enorme e crescente ajuda federal concedida ao mercado, a taxa é de 25%. Isso abrange a classe média-média. Ali está também grande parte das lideranças da população, que poderiam fortalecer a luta em favor do SUS. Dentro dessa classe está quase a totalidade dos trabalhadores assalariados sindicalizados. As centrais e federações sindicais estão de cada estado resolvem a saúde de seus membros no setor privado, não no SUS.
A sociedade está perdendo essa grande força política. Nos países com sistemas públicos fortes, os sindicatos fazem uma pressão importante para mantê-los. Aqui, a pressão dos trabalhadores cai em cima do ministério da Justiça, porque é lá onde são discutidos os dissídios salariais e os planos de saúde. Esse é um desdobramento que temos que pensar também.
Para se ter uma ideia dessa distorção, os planos privados de saúde, no começo do SUS, eram apenas uma meia dúzia de empresas. Algumas no ABC paulista e outras no Rio de Janeiro. A maior parte era até estrangeira. Então, no momento em que foi aprovada a Constituição, teria sido fácil para o governo estar ao lado do SUS. Mas ele fez o contrário: poucas empresas se transformaram em centenas, com a concessão de renúncia fiscal. O SUS foi sabotado e o mercado de saúde engordou – e atraiu a classe trabalhadora.
Teremos abertura para mudanças nesse novo governo Lula?
Nós fomos tão enforcados durante 34 anos que isso não será trabalho para um ano de governo, ou mesmo para um mandato. É um trabalho que vai precisar ser feio ao longo de um período maior, para fazer com que centenas de planos privados comecem a perder clientes. Essa estratégia precisa ser inteligente e muito bem debatida, para ter força suficiente – e mesmo assim vai precisar se estender ao longo de algumas gestões. Mas para mudar, precisa querer desde já.
SUS: cinco entraves e uma esperança - Outras Palavras
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