Outras expedições deverão ocorrer em 2023 e nos anos seguintes na região. Segundo os coordenadores da missão, o objetivo é, a longo prazo, contribuir para melhorias nos índices de saúde de Belterra, ao mesmo tempo que instiga os doutores da próxima geração a desenvolverem um pensamento crítico e reflexivo sobre as necessidades de comunidades menos favorecidas.
VivaBem conversou com alguns dos voluntários e conta histórias de atendimentos que marcaram os 15 dias da primeira missão.
A história de um parto
No dia 5 de outubro, a voluntária Luiza Muniz realizou, pela primeira vez, uma cesariana. Alguns minutos depois do procedimento, no entanto, a estudante de Palhoça (SC), que foi supervisionada pelo obstetra Rodrigo Nunes, descobriu que o ineditismo do procedimento ia além de sua trajetória pessoal: envolvia também a do próprio centro cirúrgico.
"Quando o doutor Rodrigo perguntou ao hospital se ele estava autorizado a realizar o parto, as enfermeiras falaram 'olha, Dr. Rodrigo, não estamos acostumados a realizar isso aqui no hospital, mas se o senhor quiser, fica à vontade'", relembra Muniz. O médico foi autorizado pelo prefeito de Belterra a realizar a intervenção cirúrgica, no Hospital Municipal de Belterra. "Depois, eles nos contaram que foi o primeiro parto cesáreo feito ali", diz a estudante.
A cesariana foi indicada após avaliação médica, já a que gestação alcançava 42 semanas e o risco de fazer um parto natural aumenta a partir da 41ª. Encaminhar a mulher para Santarém, cidade vizinha situada a cerca de 50 km —atitude até então adotada pelo hospital nesses casos— era arriscado. No caminho, tanto a mãe quanto o bebê poderiam não sobreviver.
Após o parto, que foi bem-sucedido, e a saída dos voluntários da região, a equipe foi notificada que o estabelecimento passou a realizar cesarianas em casos nos quais a intervenção era indicada.
"Conseguimos provar que o hospital tinha capacidade de fazer uma cesárea, porque a gente montou o atendimento à criança e fizemos a capacitação das enfermeiras", comemora Lena Peres, médica e também coordenadora da missão. A reportagem pediu para o Hospital Municipal de Belterra comentar o caso, mas não houve retorno até a publicação deste texto.
Intercâmbio de saberes
No meio de um atendimento, a estudante Sara Tomaz, 26, se viu diante de um dilema: pedir ou não para a paciente deixar de comer farinha? A mulher, diagnosticada com diabetes tipo 2, contou que consumia o alimento em quase todas as refeições.
Apesar de saber que o item não é o mais indicado para quem precisa fazer restrição de carboidratos, Sara concluiu que não podia simplesmente pedir para que ela excluísse a farinha de sua dieta.
Pouco tempo na região foi suficiente para que a estudante de uma faculdade situada em Natal (RN) percebesse que o alimento não é só um acompanhamento, mas um item básico na mesa de quem vive no município, especialmente às margens do rio Tapajós, onde geralmente é consumida a versão feita de mandioca, seja na forma pura ou misturada com sal, açúcar ou água.
Em alguns lares nos arredores do rio, a voluntária notou que essa era uma das poucas opções de comida disponíveis. Ela precisou pensar em uma alternativa para a paciente: "Olha, essa farinha acaba se transformando em açúcar no seu corpo, o que não é bom para quem tem diabetes. Então, quais são as outras coisas que a gente pode cortar ou diminuir no seu dia a dia, para que você consiga manter um pouco dessa farinha que a senhora tanto gosta?".
Entre uma consulta e outra, a importância de atender a população levando em conta as características socioculturais do lugar era reforçada aos futuros médicos pela infectologista Lena Peres.
"Se alguém dissesse 'ah, eu vou passar um soro fisiológico para o paciente lavar a narina', eu questionava 'e quando não estivermos aqui, ele vai buscar esse soro aonde?'", relembra a médica. "Quais são nossas alternativas para a gente explicar como é que um morador que vive às margens do rio pode fazer um soro, nem que seja uma água limpa em casa?", exemplifica.
Ao mesmo tempo em que a gente atendia a população, também aprendíamos muito com os saberes locais, principalmente em relação aos óleos anti-inflamatórios, como o de andiroba, que é muito usado na região. A gente aprendeu muito com os moradores. Luiza Muniz, estudante de medicina
Olho no olho
Sara guarda na memória a imagem de uma paciente que, apesar de ter sido diagnosticada com um câncer de mama avançado, não aparentava ter consciência da gravidade da doença, tampouco seus familiares.
A mulher, de 55 anos, contou à estudante que havia feito uma sessão de quimioterapia em um hospital no município vizinho Santarém, mas, pelo que a futura médica deduziu, ela desistiu de acompanhar o tratamento devido aos seus efeitos colaterais. "Parece que ela não teve a orientação se deveria fazer ou não a químio".
Os exames que denunciavam a presença do câncer estavam guardados dentro de uma pasta e a paciente também tinha dificuldades com a compra de medicações para tratar outro problema.
Wesley Rodrigues dos Santos, 25, viveu uma experiência semelhante no último dia do projeto. Um paciente que ele atendeu tinha indícios da presença de um câncer, mas o morador de Belterra ainda não havia ido ao hospital buscar o resultado da tomografia para confirmar a suspeita. "O homem tinha pavor de descobrir o que estava no exame, mas a vida dele dependia daquele papel", lembra o futuro médico.
Como convencê-lo de que era necessário ler o documento? O voluntário, que estuda em uma faculdade na Bahia, encontrou a resposta depois de bater o olho em uma tatuagem no braço do belterrense.
Perguntou sobre a arte e descobriu que os quatro nomes marcados com tinta em sua pele eram de seus filhos, o que abriu espaço para uma conversa sobre laços e vida. "Conversei com a enfermeira e com a agente comunitária de saúde dele e tentamos montar um ambiente em que a gente pudesse verificar o resultado do exame juntos", conta.
Os dois casos não demandaram um daqueles instrumentos médicos sofisticados com os quais os estudantes estavam adaptados a lidar no dia a dia, antes de chegarem em Belterra.
Para Sara, tudo que pareceu necessário diante da paciente oncológica foi o exercício de escuta entre médico e paciente. "Foi muito importante conversar olho no olho com ela e dar um conforto para que essa etapa final da vida dela fosse menos sofrida", diz. A futura médica, que entrou na faculdade com a intenção de uma dia se tornar oncologista, interpretou o atendimento como um sinal.
Barco-hospital e cesárea inédita: projeto leva saúde à região do Tapajós - VivaBem
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