A Constituição estabeleceu que a saúde é direito de todos e dever do estado e a classificou como um direito social. Dado esses imperativos constitucionais, como definir o espaço da iniciativa privada na prestação de serviços de saúde tendo em vista que não se paga individualmente por direitos?
Por outro lado, o próprio texto constitucional estabeleceu em seu artigo artigo 199º que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada e que ela pode participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa participação deve ocorrer segundo as diretrizes do SUS e mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos. Importante ressaltar que é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
O artigo 197 da Constituição define ainda que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, mas sua execução pode ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Essa ambiguidade constitucional foi fruto do acordo político possível no processo constituinte para garantir a saúde como direito da população e a criação do SUS, público e universal.
Não houve a estatização total dos serviços de saúde e nem a sua privatização, indicando o caminho da convivência entre o setor público e o privado, desde que coordenado pelo primeiro, para prover os serviços de saúde demandados pela população.
Infelizmente, esse acordo não foi suficiente para garantir, ao longo do tempo, uma efetiva coordenação de todo o sistema de saúde pelo Ministério da Saúde. A consequência é uma competição (inclusive entre o próprio setor privado) por recursos e usuários, o que incentivou o desperdício em ambos os setores e vem dificultando o exercício do direito à saúde pela população.
Os dois setores investiram no seu crescimento próprio como se o país tivesse dois sistemas: um público e outro privado.
Os que se dedicaram ao desenvolvimento do SUS tiveram um enorme êxito na construção de uma infraestrutura de prestação de serviços de saúde em todo o país que mostrou a sua capacidade no enfrentamento da pandemia do COVID-19, apesar de ainda termos que superar alguns desafios de gestão e financiamento. Foi um feito extraordinário considerando a enorme exclusão social do nosso país e as dificuldades políticas para fazer valer o interesse dos mais pobres, principais demandantes dos serviços públicos.
Também houve um grande crescimento do setor privado, que hoje é considerado, proporcionalmente, o 3º maior do mundo. Além disso, o gasto privado é de 56% do gasto total em saúde (2015) o que é uma contradição com o texto constitucional que estipula um sistema único, público e universal. Em países com sistemas de saúde semelhantes ao nosso esse gasto é de 20 a 30%.
A análise dos dados de gastos em saúde, apresentadas no livro Os desafios do SUS, publicado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) em 2019, que compara as práticas internacionais de países com sistemas universais de saúde, nos mostra o enorme desafio que temos para adequar o nosso sistema aos ditames constitucionais.
O gasto total em saúde no Brasil foi de 8,9% do PIB, valor semelhante ao valor médio gasto pelos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que foi de 8,9% e próximo ao valor médio dos países da União Europeia que foi de 9,6% . Na Argentina, esse gasto foi de 6,8% . Esses números mostram que o Brasil tem um gasto total em saúde muito próximo aos padrões internacionais.
A discrepância ocorre quando analisamos o gasto público em proporção do PIB, que no nosso caso é muito baixo em relação aos padrões internacionais. No Brasil esse gasto foi de 3,8% do PIB , no Reino Unido foi de 7,9% e nos EUA, com forte sistema privado, foi de 8,5% e na Argentina 4,9%.
Ao considerarmos o gasto em saúde em percentual do orçamento público total, constatamos que o Brasil gasta 7,7%, enquanto a Argentina gasta 12,3%, os EUA 22,6% e o Reino Unido 18,5%. Esses dados nos mostram que é preciso aumentar o gasto público em saúde sob pena de não garantirmos o direito à saúde conforme estabelecido na nossa constituição.
O argumento do setor privado de que quanto mais usuários no serviço privado menor a pressão no atendimento do SUS, utilizado para justificar seu crescimento, é no mínimo um sofisma que mais confunde do que ajuda no entendimento necessário para superar os atuais problemas na prestação dos serviços de saúde no país.
Este tipo de argumento simplifica o debate e coloca o setor privado em disputa com o setor público e não numa posição de cooperação ao demonstrar interesse, meramente comercial, em se aproveitar dos problemas do SUS e, não de estabelecer um diálogo que tenha como norte garantir o exercício do direito à saúde pela população.
Além disso, quem paga pelos serviços privados? O usuário ou o governo? Sabemos que a população SUS dependente é de 75% em todo o Brasil e, na região norte é de 90%. Ou seja, a população não tem renda para comprar os serviços de saúde que necessita, exceto uma pequena parcela. Mesmo uma parcela substancial dos cerca de 50 milhões de usuários dos planos de saúde parece enfrentar muita dificuldade para pagar esses serviços, conforme reclamações, de usuários e empresas, que vemos com muita frequência na mídia. Já o governo está impedido, pela constituição, de aportar recursos ao setor privado.
Considerando esses dados, como garantir a sustentabilidade do setor privado? Haverá solução para esse problema sem um novo acordo político entre todos os interessados? É viável um setor privado do tamanho do nosso? Como implantar um prontuário eletrônico único em todo o país? Como justificar as deduções no imposto de renda das despesas de saúde realizadas por pessoas físicas e jurídicas na receita tributável? Há muitos temas para se conversar e negociar, sem vetos, na construção de um novo acordo.
Em síntese, é preciso promover um novo entendimento político entre esses dois setores para que possamos superar os desafios atuais de acesso, qualidade e eficiência do nosso sistema de saúde. Ele deve considerar as diretrizes constitucionais e as mudanças que ocorreram desde 1988 tanto no SUS quanto no setor privado e deve ser liderado pelo Ministério da Saúde.
Com a palavra os líderes do nosso sistema de saúde.
Opinião - Saúde em Público: O público e o privado no SUS - UOL
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