Mais de dois anos depois de uma consulta médica que terminou com toques nas suas partes íntimas e insinuações sexuais, a empresária Adriana, de 44 anos, diz que ainda tem dificuldade de confiar em médicos e passa por crises de choro durante consultas. Ela pediu que o sobrenome não fosse divulgado. "Desenvolvi pânico de hospital", diz.
O episódio que desencadeou esse sentimento aconteceu em janeiro de 2021, segundo seu relato a Universa, no consultório do cardiologista Nabil Ghorayeb, na época com 74 anos, em São Paulo. Libanês, Ghorayeb vive desde os 4 anos no Brasil, onde construiu uma carreira renomada na área da medicina esportiva. Cobrava R$ 800 por consulta, virou professor de cursos de especialização, ganhou um prêmio Jabuti por um livro sobre o tema e era colunista do portal Globo Esporte —ele foi afastado do site em 2021, após as primeiras denúncias de assédio virem à tona.
Adriana o procurou porque queria intermediar um atendimento para a mãe, internada após sofrer um infarto, mas diz ter sido tocada pelo médico e ouviu que tinha "cara de quem gosta de chupar". Conta que esperou a mãe ter alta por medo de o médico, que atende na zona sul paulistana, interferisse no tratamento dela.
"Passava o dia no hospital [com a mãe], ia para casa dormir e, na cama, ficava pensando, relembrando com muita raiva, muita raiva", enfatiza ela.
Seu relato levou à condenação do cardiologista por importunação sexual em maio deste ano. O médico foi sentenciado em 1ª instância a um ano de reclusão e teve a pena substituída por medidas restritivas, que são limitações de determinados direitos, e ainda serão definidas pela Justiça.
Ghorayeb nega as acusações e diz que não há provas para a condenação. Procurado por Universa, o advogado dele, Paulo Soldá, afirma que vai recorrer da decisão.
"O cenário de desrespeito e abusos de todos os tipos no qual a mulher está inserida atualmente no país não pode justificar que um pessoa com mais de 50 anos de profissão, atendendo cerca de 35 mil pacientes, seja condenada sem provas concretas do fato que lhe foi atribuído", disse Soldá à reportagem.
No processo, foram ouvidos, além de Adriana e do médico, três testemunhas de defesa e oito de acusação —entre as oito, seis são mulheres que também disseram ter sido importunadas por Ghorayeb, mas cujas denúncias prescreveram após o prazo de três anos para a acusação.
A Universa, Adriana relatou o que aconteceu na consulta. A reportagem ouviu ainda uma das testemunhas de acusação do processo, uma mulher de 42 anos que afirmou também ter sido importunada.
Empurrada para um canto dentro do consultório
Adriana conta que conheceu o cardiologista por meio de uma página no Facebook. Ela buscava médicos de referência na especialidade para cuidar da mãe, que tinha acabado de sofrer um infarto.
No dia 11 de janeiro de 2021, em meio à pandemia de covid-19, foi ao consultório de Ghorayeb para intermediar um teleatendimento entre ele e a mãe, hospitalizada.
O médico, segundo relatou, começou a elogiá-la: disse que era bonita e pediu que baixasse a máscara para vê-la melhor. "Ele não chega em você e já te agarra. Começa dando cantadas, elogiando."
Adriana estranhou e começou a gravar discretamente a abordagem com o celular. Ela chegou a ligar para a mãe para que o médico parasse, mas isso não aconteceu, segundo conta.
Ghorayeb, então, se levantou e, segundo Adriana, começou a passar a mão em seu corpo e a acariciar suas pernas. "Depois, tentou colocar a mão por baixo do meu vestido."
"Ele se levantou e estava praticamente me levando para a maca, no canto da parede", diz.
Ele, então, passou a mão nas partes íntimas de Adriana por cima da roupa, pegou a mão dela e colocou sobre seu pênis, por cima da calça, segundo o relato dela à Justiça. Depois de ouvir que "ela tinha cara de quem gosta de chupar", Adriana saiu do consultório.
'Sem saber o que fazer'
"Estava tão desnorteada que não me lembro daquele pedaço de tempo entre sair [do consultório] e chegar até a rua. Só lembro que sentei na calçada e fiquei fumando muito, muito nervosa, sem saber o que fazer."
A mulher temia que Ghorayeb tentasse algo contra a mãe dela, já que ele tinha seus dados pessoais, o histórico médico e sabia até onde ela estava internada.
"Eu pensei: 'Vou ficar calma, vou ver minha mãe e transparecer que está tudo bem comigo. Depois que ela sair do hospital, vou denunciá-lo'."
Quando a mãe teve alta, Adriana ligou no consultório e pediu o reembolso da consulta e do táxi que ela pegou para chegar ao local. Ela também avisou que o denunciaria caso ele não devolvesse o valor.
"Com meia hora, ele já tinha mandado o dinheiro de volta. Não tem como um médico fazer isso a não ser que ele esteja errado." Na sentença, esse também foi um argumento usado para condená-lo. O juiz do caso destacou que "a devolução do dinheiro da consulta e do táxi pelo réu gera, no mínimo, estranheza".
À Justiça, a defesa do médico disse que Adriana pediu ajuda para transferir a mãe de hospital, mas o cardiologista "não controlava as transferências hospitalares" porque este procedimento é feito pelo sistema do SUS.
Segundo ele, a devolução do valor da consulta aconteceu para "cortar de vez o vínculo com ela, já que a consulta estava se estendendo por mensagens".
Juiz disse que não há dúvida de que crime ocorreu
Adriana registrou um boletim de ocorrência na 2ª Delegacia de Defesa da Mulher, na Vila Clementino, em São Paulo, no dia 28 de janeiro de 2021. A mãe e a irmã foram testemunhas.
O juiz afirmou na sentença não haver "espaço para dúvidas acerca da importunação sexual cometida pelo réu" e destacou que "diversas testemunhas ouvidas relataram ter sofrido importunações sexuais de idêntico modus operandi, revelando não se tratar, a princípio, do presente caso uma ação isolada".
'Não é possível que eu seja a única'
Entre as testemunhas do processo está Bárbara Leite, de 42 anos, que Adriana conheceu depois de publicar o boletim de ocorrência em suas redes sociais e falar sobre o caso.
Adriana estava determinada a encontrar outras vítimas do cardiologista Nabil Ghorayeb. "Eu pensava: 'Não é possível que eu seja a única'."
Bárbara diz ter sido vítima do cardiologista entre março e agosto de 2018, em uma situação semelhante à de Adriana.
O pai de Bárbara era paciente de Ghorayeb e precisava do auxílio dele no tratamento contra um câncer. Ao acompanhá-lo em uma consulta, o cardiologista disse ao pai, referindo-se a Bárbara: "Você nunca me disse que tinha uma filha tão bonita".
"Ele falou isso milhões de vezes durante a consulta. Considerei coisa de médico desatualizado, uma maneira de tentar ser gentil. Não me pareceu assédio. Mas essa foi a primeira vez."
Tempos depois, Bárbara voltou ao consultório sozinha para pegar uma receita de remédio para o pai.
"Ele me deu um beijo no rosto e um abraço megaconstrangedor. Depois, me girou dentro do consultório e disse: 'Deixa eu ver tudo isso'. Nessa hora não tive dúvidas de que estava sendo assediada."
Bárbara chegou a ser chamada para ir ao consultório mais uma vez, para falar sobre o uso de uma terapia alternativa para o pai, mas pediu ao irmão que fosse em seu lugar.
"Meu irmão esperou mais de duas horas e, quando entrou no consultório, Nabil falou: 'Não tenho conhecimento sobre o assunto'", diz Bárbara.
Depois da morte do pai, em novembro de 2018, ela começou a falar na internet sobre o que passou. Bárbara não foi à polícia na época porque considerava seu relato "muito frágil" diante do reconhecimento do médico.
Em 2021, quando conheceu Adriana, o prazo para Bárbara denunciar já havia prescrito. Na época em que o caso ocorreu, a importunação sexual era considerada contravenção, como se fosse um crime mais simples, com pena menor. Essa tipificação mudou em setembro daquele ano.
Bárbara relatou o episódio ao Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) em 2021, com Adriana. No conselho, o caso segue tramitando "sob sigilo determinado por lei", informou o órgão á reportagem.
"Qualquer posicionamento ou manifestação adicional por parte do Conselho poderá resultar na nulidade do processo."
Testemunhas foram essenciais para condenação
Adriana diz que o depoimento das testemunhas foi essencial para a condenação. "O caso é de todas nós. Se não fossem elas... Como eu ia provar?"
Para a empresária, ainda que a sentença tenha sido mínima, a decisão torna o caso público e "evita ter outras vítimas". Bárbara, por sua vez, diz que a justiça está começando a ser feita agora.
"Essa condenação é relevante, mas não é suficiente. Ela [a sentença] é um deboche da cara das mulheres. E ele ainda atender é uma coisa que não pode acontecer."
O promotor de Justiça Osias Daudt, do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), recorreu da sentença por discordar da pena e da substituição.
Como denunciar violência médica
Em casos de violência cometida por um profissional de saúde, seja obstétrica ou sexual, é possível fazer denúncias em diversos canais.
Você pode procurar a ouvidoria do próprio hospital ou clínica. Também recebe denúncias o conselho regional de medicina de cada Estado (é possível encontrar informações neste link acessando a aba contatos). Caso o denunciado seja um enfermeiro, auxiliar ou técnico, procure o conselho de enfermagem da região (veja contatos dos órgãos por Estado neste link).
O Ministério Público Federal é outro órgão que pode receber denúncias, inclusive pela internet, neste link. Ainda podem ser acionados o Ministério da Mulher por meio do Ligue 180, canal do governo federal que funciona 24 horas por dia —funciona também por WhatsApp no número (61) 9610-0180 ou clicando neste link. O Disque Saúde, do Ministério da Saúde, é outra alternativa, e funciona no número 136.
'Pôs a mão embaixo do meu vestido': mulher relata trauma após abuso médico - Universa
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