Houve um tempo não muito distante em que médicos apareciam pouco na mídia. Era malvisto. Mas o oncologista Drauzio Varella se sentiu impelido a falar numa rádio sobre os cuidados com a epidemia de Aids no Brasil —era 1983 e, afinal, não havia tempo a perder.
Depois, ficou contrariado quando descobriu que sua entrevista tinha voltado a ser veiculada sem sua autorização. Ligou para o então diretor de jornalismo da Jovem Pan, Fernando Vieira de Mello, e disse que ele iria acabar com má fama entre os médicos.
Então ouviu "se é assim, você precisa decidir se quer ajudar a população a evitar a doença ou ficar bem com os seus colegas". Não é preciso dizer qual alternativa escolheu. Quase quatro décadas depois, é raro achar um debate sobre saúde que não tenha participação ativa de Drauzio Varella.
Aos 79 anos, o médico mantém uma rotina que só não é invejável porque soa exaustiva. Além de assinar uma coluna neste jornal, ele mantém atendimentos em prisões, faz palestras e participações em programas de televisão e produz material incessante para seu site, canal do YouTube e redes sociais.
Parou de atender no consultório privado há dois anos. "Hoje sou só médico de cadeia", diz o paulistano esguio, com 183 centímetros equilibrados em 70 quilos, se divertindo enquanto puxa uma cadeira para dar esta entrevista.
Foi a brecha da clínica que permitiu arranjar tempo para escrever sua autobiografia mais ampla, lançada agora pela Companhia das Letras. E enfim se consuma a inversão –agora, anota ele, a comunicação é sua atividade principal.
"Os médicos passaram a entender a divulgação do conhecimento científico como uma parte da profissão. Agora na pandemia nem se fala", diz. "Quando eu comecei, ir a um meio de comunicação era autopropaganda. Aqueles cirurgiões plásticos que você via na televisão à tarde falando como faziam para levantar o seio de uma mulher."
O título da obra, "O Exercício da Incerteza", dá o tom de sua cruzada contra a prepotência médica, "irmã gêmea da vaidade" e "filha da insegurança e do despreparo".
"Desde os primórdios, o médico exerce um poder através do seu conhecimento", diz ele. "Você fica certo de que, quando dominar certos saberes e protocolos, vai ser bom médico e aí não tem mais erro. À medida que amadurece, vê que não é assim. Uma pessoa não é igual a outra, que não é igual à terceira."
Essa indefinição desemboca, inevitavelmente, numa constante sensação de culpa. "Em mais de 50 anos de atividade intensa, não consigo me lembrar de um único dia em que fui para a cama com a sensação do dever cumprido", escreve.
É algo inerente à maioria dos médicos, mas agravado por sua personalidade pública tão reconhecida e levado às últimas consequências pelo turbilhão de exigências criado com os smartphones, para ele "a mais diabólica das invenções".
Ler esta autobiografia é ver meio século de evolução da medicina pelas lentes de Drauzio. Se o aumento vertiginoso do conhecimento sobre doenças e curas foi um óbvio alento para os médicos, também tem o lado vazio do copo, como uma população que usa medicamentos em excesso e um sistema de convênios no qual a conta não fecha.
"Antes você tinha um médico e ele acompanhava você pela vida inteira. Pegava um resfriado, tinha o doutor fulano. Mas quem tinha o médico de família era uma classe privilegiada", pondera.
"O que aconteceu foi que a medicina ficou muito impessoal. E os médicos foram jogados num mercado de trabalho em que têm que apresentar produtividade e atender muita gente. Você erra muito quando faz isso. Quando você tem que levar medicina para todos, o padrão vai cair."
Que isso não se confunda com uma crítica ao Sistema Único de Saúde, que sagrou um direito universal aos brasileiros em 1988. "Duvido que nos próximos cem anos a medicina brasileira passe por uma revolução que chegue aos pés da criação do SUS", escreve.
"O que dói no SUS é que tudo o que precisa para funcionar está lá", afirma. "Não precisa criar nada. Tem atenção primária, pequenos hospitais regionais, com ilhas de excelência. Tudo está organizado, mas a estrutura não funciona. O cara está com dor de garganta, mas vai para o pronto-socorro, não para o agente de saúde. Aí um sistema maravilhoso fica capenga."
É uma crise que não vem de hoje. Drauzio sublinha que é impossível criar uma política de saúde decente quando se teve 13 ministros diferentes da área entre 2008 e 2018.
E no governo Jair Bolsonaro? "Ah, não tem nem como analisar o que foi feito", ele lamenta. "Foi um crime continuado." O médico diz que não costuma tornar pública sua escolha de voto. "A única coisa que posso dizer é que com esse cara não dá", vaticina.
"Não pode acontecer essa pessoa ficar mais quatro anos no poder. O Brasil podia ter dado um show na pandemia. Um show. Por outro lado, foi o único país do mundo em que a autoridade maior se colocou a favor da disseminação do vírus."
Com uma das carreiras mais destacadas da medicina e do ensino brasileiro —é chover no molhado lembrar seu trabalho junto a homens e mulheres encarcerados, o sucesso de suas campanhas de conscientização sobre o HIV e o tabagismo, a fundação do cursinho Objetivo com o amigo João Carlos Di Genio, que já sinalizava seu lendário didatismo—, é natural que uma biografia desse porte atraia interesse pelo profissional Drauzio Varella.
Mas "O Exercício da Incerteza" também abre a janela para um Drauzio mais íntimo, marido da atriz Regina Braga, pai de duas filhas e avô de duas netas, incluído no livro com tímida relutância.
Vemos o menino que testemunhou a morte da mãe aos quatro anos e só contou essa história em público décadas depois; o adolescente que fumava porque não sabia o que fazer com as mãos em festas; o literato que cita com destreza Tolstói, Gógol e Drummond; o homem mais velho que acreditou que ia morrer de febre amarela.
Se a medicina não é impessoal, tampouco poderia ser a biografia de um médico. "Sabe, estamos vivendo uma experiência única", comenta ao fim da conversa, com animação de maratonista. "Quando eu nasci, a expectativa de vida era de 45 anos. Hoje, se morre uma pessoa de 70, você acha que morreu cedo. Toda a minha geração, nesse sentido, foi muito privilegiada."
Drauzio Varella conta como se tornou o rosto da saúde no Brasil em biografia ampla - UOL
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