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Monday, January 24, 2022

Lei do silêncio impera na Bahia após morte de 5 ciganos da mesma família - Bol - Uol

O luto em muitas culturas é acompanhado de memória. Na tradição cigana, as roupas escuras, de cor preta ou azul-marinho, evitadas em qualquer outra circunstância, lembram à viúva o falecido. A depender das condições financeiras do grupo, o prato preferido de quem se foi costuma ser servido após o velório, alguns passam a evitar comer carne por um período e, mesmo com a ausência, costumam relatar um sentimento de proteção vindo de quem se foi.

Alcides, Orlando, Joel, Nilson e Luciene viveram na região metropolitana de Salvador a maior parte do tempo em Dias d'Ávila, mas tiveram fortes ligações com Camaçari, duas cidades que ficam a menos de uma hora do centro da capital. Alcides, de 76 anos, era o pai da família Alves; Orlando (59), Joel (45) e Nilson (44), seus filhos que levavam seu sobrenome; Luciene de Oliveira (56) era sua nora, casada com Orlando.

Na memória de quem os conhecia deve haver lembranças de como se divertiam, onde nasceram, como se sustentavam, o que essa família numerosa fazia nos finais de semana. Muitas outras características poderiam ser atribuídas a eles, não fosse a forma violenta com que foram mortos, o que os tornou conhecidos no noticiário local como a família de ciganos assassinada em Camaçari — assim, com a identidade cigana sempre antes do nome, nos casos em que os nomes são lembrados.

Na vizinhança "ninguém os conhecia"; na comunidade cigana da cidade, melhor o silêncio. Outra família cigana que alugou para eles uma casa em Camaçari havia menos de um mês disse que nada sabe sobre os Alves para além do "prejuízo" que deixaram. No telefone da placa de vende-se da casa em que parte da família morou, em Dias d'Ávila, sonoros "nãos" respondem qualquer tentativa de relação com a família. Na polícia, o protocolar "não divulgamos informações para não atrapalhar as investigações" também restringe qualquer esforço de resgate da memória de quem foram Alcides, Orlando, Joel, Nilson e Luciene.

Rua silenciosa e com hábitos 'de interior' se assustou com crime - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL

Rua silenciosa e com hábitos 'de interior' se assustou com crime

Imagem: Rafael Martins/UOL

Mortos em duas cidades em menos de 24h

Orlando estava em casa com a esposa Luciene e um neto adolescente quando ouviu alguém chamar seu nome. Ao responder, foi alvejado com tiros de arma de fogo, que também atingiram sua esposa. O neto se escondeu no banheiro e ali permaneceu até a fuga dos criminosos. Isso aconteceu por volta das 19h30 de 11 de janeiro de 2022, na Rua do Jardim, na área conhecida como Parque Petrópolis, em Dias d'Ávila.

Na manhã daquele mesmo dia 11, em Camaçari, na rua em que familiares de Orlando alugaram uma casa no final do ano, moradores relataram terem visto uma movimentação estranha. Dois homens, que chamaram atenção pelo contraste de suas estaturas, um mais alto e outro bem mais baixo, estariam buscando informações sobre os novos moradores. Uma conversa com um vizinho também conhecido pela identidade cigana escapou e uma moradora ouviu algo como "com eles a gente não vai bulir porque são brasileiros [e não ciganos]".

Mortes de pai e filhos aconteceram na rua Raio do Sol, em Camaçari - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL

Mortes de pai e filhos aconteceram na rua Raio do Sol, em Camaçari

Imagem: Rafael Martins/UOL

A rua é extremamente silenciosa, com muitos terrenos murados ainda não ocupados e vegetação. Ouve-se o canto dos pássaros na maior parte do tempo, mas um barulho de carro na manhã do dia 12 fez uma moradora antiga da rua gritar para que o filho de quatro anos entrasse em casa. "Agradeci tanto a Deus que ele entrou logo, porque depois daí foi só aquela agonia", relata, sem querer se identificar.

Eram 7h e no Palio vermelho chegavam Alcides e os filhos Nilson e Joel, que costumavam acordar cedo, às vezes saíam antes das 5h -- mas naquele dia estariam chegando para buscar pertences na casa e possivelmente fugir, temendo as mortes do dia anterior.
A "agonia" descrita pela vizinhança foi bem diferente da de dias anteriores, em que se registraram brigas entre os Alves dentro de casa. Dessa vez foram sequências de tiros, um outro carro em fuga e o choro da viúva que, com trajes ciganos amarelos, implorava por um celular para buscar atendimento médico.

O filho Joel chegou a ser socorrido no Hospital Geral de Camaçari e permaneceu vivo até a sexta-feira (14), quando faleceu. Alcides e Nilson morreram na porta de uma igreja Assembleia de Deus, a dois lotes da casa em que estavam, até onde conseguiram correr durante os disparos.

Aquele era até então o dia mais violento da região, com 11 mortes, mas o fato de cinco pessoas da mesma família serem baleadas em menos de 24 horas fez daquela a primeira tragédia de 2022 no estado. Mesmo com quase nenhuma explicação sobre o que de fato teria motivado o crime, a história teve destaque e se manteve no noticiário local por três dias seguidos.

No dia 13, em Santo Amaro, cidade do Recôncavo baiano, outro cigano, de outra família — Luciano Ramos de Souza, 46 — foi morto enquanto jogava dominó com familiares. A polícia não confirma a ligação entre os casos.

Ciganos donos de casa alugada para a família Alves retornmm ao local para calcular 'prejuízos' - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL

Ciganos donos de casa alugada para a família Alves retornmm ao local para calcular 'prejuízos'

Imagem: Rafael Martins/UOL

Motivações dos crimes

Algumas pessoas de comunidades ciganas ouvidas pelo TAB acreditam que uma disputa por imóveis é só uma tentativa de camuflar uma briga de família. No caso dos Alves, no dia do segundo crime, investigadores revelaram à imprensa que a venda de imóveis na região poderia explicar o caso.

Especula-se que a família tirava o sustento de negociações do tipo, e que alguma dessas transações dera errado. Reforçara essa narrativa o fato de estar havendo uma forte especulação imobiliária na região, devido à construção de condomínios de luxo, já que a localidade é de fácil acesso à famosa orla de Camaçari. São numerosas as placas de "vende-se" na rua em que o crime aconteceu — a vizinhança confirma que tem sido um negócio lucrativo. A casa em que foram mortos dois dos parentes em Dias d'Ávila também tinha uma oferta de venda escrita nas paredes, ainda antes do crime.

Para alguns dos poucos membros da numerosa comunidade cigana da região metropolitana de Salvador que aceitaram falar sobre o assunto, a morte está relacionada com uma briga familiar ou entre famílias; outros pensam que seja um caso de "justiça com as próprias mãos", como revide a uma morte que estaria sendo atribuída aos Alves.

Valorizada, venda de imóveis na região é uma das suspeitas de motivação do crime - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL

Valorizada, venda de imóveis na região é uma das suspeitas de motivação do crime

Imagem: Rafael Martins/UOL

O receio de comentar o assunto na cidade está presente entre ciganos e não ciganos. Comparações com a lei do silêncio do tráfico já correm pela vizinhança. "Ninguém se envolve com milícia, a mesma coisa com essa história, ninguém quer se envolver, é coisa grande", comparou um senhor também membro da comunidade cigana local. Há relatos de que não apenas outros familiares dos Alves teriam deixado a região, mas também pessoas próximas sem qualquer ligação com o caso.

As investigações estão distribuídas entre três delegacias (Dias d'Ávila, Santo Amaro e Camaçari - sendo a última especializada em Homicídios). Oficialmente, a Polícia Civil da Bahia não confirma as hipóteses levantadas. "Algumas oitivas foram realizadas, as equipes têm feito diligências e outras ações de inteligência, que não podem ser detalhadas", informou, em nota. A Polícia também respondeu que não tem informações se a família estava sendo perseguida ou se chegou a buscar proteção.

Rua raio do sol, região da Cascalheira, onde três pessoas da mesma família foram assasinadas quando chegavam em casa - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL

Rua raio do sol, região da Cascalheira, onde três pessoas da mesma família foram assasinadas quando chegavam em casa

Imagem: Rafael Martins/UOL

O delegado Antônio Carlos Sena, da 4ª Delegacia de Homicídios (Camaçari), indica que não é possível afirmar se a morte tem motivação ligada ao fato de serem ciganos. Ninguém foi preso até o fechamento da reportagem.

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