'Minha história com a deficiência visual começou quando tinha 27 anos. Naquela época, havia acabado de passar em um concurso para atuar como professora na educação infantil. Trabalhei durante um mês, mas logo em seguida descobri uma anomalia em um dos olhos. Por se tratar de uma condição rara, sobre a qual os médicos tinham pouco conhecimento, não recebi um diagnóstico preciso logo de cara.
Pelo contrário, eles acreditaram que poderia se tratar de uma complicação causada por cisticercose, uma doença ocasionada por vermes e que pode acometer a visão. Por ser considerado grave, tive que me submeter a uma cirurgia de correção. Somente na hora do procedimento os profissionais perceberam que esta não era a verdadeira causa do meu problema.
Após a cirurgia, tive inúmeras complicações, entre elas descolamentos de retina. Com isso, perdi o funcionamento deste olho e precisei passar por outras operações, na tentativa de corrigir o que havia ocasionado a perda da minha visão, mas não tive sucesso. Afastada do trabalho, levei mais de dois anos para me adaptar com a visão monocular. Em razão da minha condição de saúde e dos períodos longos de repouso em recuperação depois dos procedimentos, que me impediam de exercer a função de professora, consegui me aposentar.
Depois do período de adaptação, continuei a viver normalmente. Um dos meus hobbies eram as atividades físicas, porque sabia que os exercícios eram benéficos para a minha saúde. Gostava de fazer academia, mas acabei parando depois de ter um descolamento de retina que exigiu que eu permanecesse sem fazer esforço.
"Há quatro anos, recebi a notícia de que perderia a visão do outro olho"
Quatro anos atrás, comecei a perceber que minha visão não era mais a mesma. Eu derrubava coisas no chão e não enxergava mais nitidamente. Depois de fazer uma investigação médica, descobri que tenho uma doença degenerativa chamada retinose pigmentar, que vai, aos poucos, comprometendo o funcionamento da vista. Saí do consultório sem acreditar que aquilo pudesse estar acontecendo comigo, porque nunca sequer passava pela minha cabeça a possibilidade de perder totalmente a visão.
Porém, chegando em casa, minha ficha caiu. A minha ideia, de início, era de que a minha vida iria acabar e de que eu iria me tornar uma pessoa totalmente dependente. Então me recolhi por três dias, a fim de viver aquela dor. Passado esse período, eu, que tenho muito amor à vida, decidi que era jovem demais para pensar assim. Iria continuar vivendo e produzindo, só não tinha certeza ainda de como faria isso.
Ganhei de presente de uma amiga um mês de academia, como um estímulo para voltar a me exercitar. No início, senti receio ao tomar contato com os aparelhos de musculação, porque enxergando bem menos, tinha medo de tropeçar ou cair. Mas aos poucos encontrei um instrutor que me auxiliava nestas questões e a sensação foi muito boa, como se eu pertencesse aquele espaço e ali me sentisse mais viva.
"Ouvi de um médico que o melhor para mim seria ficar quieta, em casa"
Quando comentei sobre isso com um dos médicos que me acompanhava, no entanto, fui bastante desestimulada. Ele me sugeriu que a partir daquele diagnóstico, o melhor para mim seria me recolher em casa e andar somente pelo quintal de casa, de braços dados com alguém. Ouvir aquilo foi terrível, porque meu desejo era ser uma parte da sociedade, de me sentir igual a todo mundo.
Então procurei outro médico, a fim de que ele me ajudasse na performance que tinha nos treinos. Arrisquei perguntando se poderia realizar o sonho de ser atleta e disse que ele poderia ser sincero — porque, se considerasse que o melhor para mim seria desistir da ideia, eu seguiria sua recomendação. Ele me acolheu e respondeu com uma frase que nunca vou esquecer: a de que eu posso tudo. Aquilo aumentou minha vontade de fazer acontecer e comecei a caprichar cada vez mais nos treinos.
Logo as pessoas começaram a notar uma evolução no meu corpo: comecei a treinar e comer como uma atleta. Ao ver que eu era capaz de atingir meus objetivos, fiquei animada e comecei a pesquisar, sem pretensão alguma, sobre fisiculturismo. Passei a seguir competidores nas redes sociais e a me aproximar deste universo que, até então, era totalmente desconhecido.
"Aos 50 anos, fui chamada para participar de um concurso de fisiculturismo"
Um dia, comecei a interagir pelas redes sociais com o fisiculturista Fernando Sardinha. Vendo o meu perfil, ele me convidou a participar do campeonato Sardinha Classic, em Balneário Camboriú (SC), na categoria especial, voltada para pessoas com deficiência. Na hora, eu não pensei em tudo o que teria que aprender, nem nas dificuldades que teria que enfrentar. Simplesmente perguntei se poderia ter alguém me acompanhando no palco e diante da resposta positiva, aceitei o desafio e fui.
Montei uma equipe com personal trainer, preparador físico, instrutor de academia e médico, que abraçaram a ideia. Tive que vencer a dificuldade de andar de salto alto sem perder o equilíbrio, algo muito difícil para mim. Depois, adaptei minha dieta e as rotinas de treino. Em alguns dias, só podia comer carboidratos, em outros, só proteínas. Cheguei a ingerir 6 litros de água em um dia para ficar com o físico em dia. Mas, a cada etapa vencida, eu me sentia mais motivada para continuar.
Quando chegou o dia do evento, fui tão bem recebida pelas pessoas que me emociono de lembrar. Alguns dias, me sinto invisível para a sociedade. Deficientes visuais são vistos como pessoas que atrapalham a correria desenfreada das outras. Muitas vezes, quase me atropelam na rua porque não têm paciência com o meu ritmo. Porém, lá, no palco, eu me vi de igual para igual. Como era a única mulher disputando a categoria, venci — e fui convidada pelos jurados a me inscrever em outras, por eles considerarem que tenho potencial para disputar também com as pessoas sem deficiência.
Hoje em dia, tenho ainda preservada uma pequena parte da visão central, mas sei que corro o risco de perdê-la. Apesar disso, sinto como se estivesse iniciando e me realizando em uma nova carreira, algo que não pude fazer na minha juventude. Graças aos exercícios, tenho muito mais autonomia, força, segurança e autoestima — e não pretendo sair desse universo tão cedo". Laura Boppre Justino, 50 anos, fisiculturista, mora em Tubarão (SC)
'Tenho deficiência visual e fui campeã de fisiculturismo aos 50 anos' - UOL
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