BRASÍLIA — No dia 20 de janeiro, quando o país voltava a decretar medidas restritivas para enfrentar a segunda onda de Covid-19, os médicos da operadora de saúde Hapvida, a maior das regiões Norte e Nordeste, receberam um áudio de um dirigente da empresa com orientações claras para "aumentar consideravelmente" a prescrição de cloroquina e "fazer o convencimento" dos pacientes de que esse era o melhor tratamento a ser adotado, mesmo com a sua ineficácia comprovada.
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— A gente tem uma luta muito grande nos próximos dias para aumentar consideravelmente a prescrição de cloroquina, o kit Covid, para garantir que a gente tenha menos pacientes internados — diz o áudio gravado por um integrante da empresa e encaminhado pelo diretor da Hapvida Alexandre Wolkoff.
— Eu peço para vocês. A liderança de cada unidade, a diretoria médica, os regionais precisam liderar isso. A gente precisa subir a prescrição de cloroquina. Então, eu peço que vocês... não é só para Manaus, só para uma unidade ou outra, mas para todos as unidades, a gente (tem que) ter um aumento signiticativo da prescrição do kit Covid. Cada diretor médico da unidade é diretamente responsável por esse indicador — acrescenta um dirigente da operadora.
Naquele momento, o Brasil ultrapassava a marca de mais de 220 mil mortes e assistia atônito ao colapso no sistema de saúde em Manaus. Mesmo diante das incertezas do rumo da pandemia, que dava sinais de recrudescimento, já havia uma certeza dentro da comunidade médica: o tratamento com cloroquina se mostrava ineficaz. Desde julho de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) vinha mostrando por meio de estudos que o medicamento não tinha nenhum efeito no tratamento da Covid-19 e passou a não recomendá-lo.
Apesar disso, a Hapvida reforçava que seria preciso ampliar a prescrição de tratamento precoce. O GLOBO teve acesso a mensagens, planilhas e documentos de um grupo de WhatsApp de funcionários da operadora enviados entre março de 2020 e maio de 2021. O material sugere que a prática de pressionar médicos para recomendar o kit covid era recorrente.
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Ao longo da pandemia, a empresa exibia gráficos de metas de recomendação de "kit covid". Em novembro de 2020, outro diretor da Hapvida da Bahia, identificado como Eric Morais, enviou uma planilha que trazia a incidência da recomendação do "kit covid" em cada hospital do grupo, destacadas em diferentes cores. Em vermelho, apareciam as porcentagens abaixo de 50% na receita dos medicamentos. Em amarelo, entre 50% e 70%. Em verde, os acima de 70%, ou seja, que bateram a meta. O número era calculado em cima dos atendimentos totais de cada hospital, o que mostra um monitoramento frequente.
— Preciso muito do apoio de todos vocês porque todas unidades ainda abaixo da meta — alertou o diretor em mensagem enviada ao grupo.
Em dezembro, ele voltou a insistir:
— Para aqueles que tem como suspeita principal o Covid SEMPRE disponibilizem o kit Covid! — escreveu ele, ressaltando a palavra "sempre".
Em entrevista ao GLOBO, o médico Marcelo Galvão, que trabalhou na Hapvida até abril deste ano, disse que não entendia as cobranças por metas de prescrição do kit "Covid".
— Isso nunca existiu para nenhum tratamento ou medicamento. O errado é ser pressionado. O médico tem liberdade para receitar o que ele achar melhor — disse ele.
Segundo outros médicos ouvidos pela reportagem, quem não prescrevia o tratamento precoce acabava entrando numa espécie de lista que envolvia punições como advertência e mudanças na escala de plantão. Algumas reclamações nesse sentido, inclusive, foram feitas diretamente no grupo de WhatsApp em que estavam os diretores.
— Tenho sofrido pressões para prescrição, inclusive com advertências referentes a redução de escala — relata um médico no grupo, em março de 2021 — É sabido que vários colegas saíram da rede devido à prescrição do tratamento precoce — comenta outro na mesma época.
Três médicos contaram à reportagem, sob a condição de anonimato, que encontraram uma forma de driblar as metas de prescrição de "kit covid". Eles marcavam no sistema que haviam indicado o tratamento precoce, mas entregavam outra receita ao paciente. Depois, eles mesmos iam até a farmácia e retiravam a cloroquina para dar a doentes que realmente precisavam dela como os que sofrem de lupus.
Ao ouvir as orientações de um dirigente da Hapvida cobrando metas de prescrição do "kit covid", um dos médicos reagiu e mandou uma mensagem no grupo:
— Gostaria de dizer, com todo respeito, que existem dois grandes problemas na sua fala (...) e que ao meu ver são atitudes equivocadas. Primeiro, é a imposição de prescrição de medicamento que é um direito individual de cada médico, afinal o carimbo é de cada um e a decisão também — disse o profissional.
— Segundo, é surreal que após tantas evidências contra a cloroquina, após as principais sociedades brasileiras se posicionarem contra, após o próprio cientista francês que publicou o artigo original defendendo a cloroquina voltar atrás e desmentir o benefício, após tudo isso, é surreal você e a empresa Hapvida tentarem forçar o uso e investirem em uma medicação inútil — completou — Está muito claro que o viés político é muito mais forte que a real vontade de se fazer medicina.
O que a empresa diz
Em nota, a Hapvida afirmou que, "no passado, havia um entendimento de que a hidroxicloroquina poderia trazer benefícios aos pacientes". Por isso, a empresa diz: "Houve uma adesão relevante da nossa rede, que nunca correspondeu à maioria das prescrições, no melhor intuito de oferecer todas as possibilidades aos nossos usuários".
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A companhia reiterou, no entanto, que a prescrição ocorria sempre durante as consultas e "de comum acordo entre médico e paciente, que assinava termo de consentimento específico em cada caso". Como prova de que não obrigava a prescrição, a empresa cita que a receita do kit Covid nunca "correspondeu à maioria das prescrições".
A operadora também fez questão de destacar que a adoção da hidroxicloroquina foi "sendo reduzida de forma constante e acentuada". "Hoje, a instituição não sugere o uso desse medicamento, por não haver comprovação científica de sua efetividade. Mas segue respeitando a autonomia e a soberania médica para determinar as melhores práticas para cada caso, de acordo com cada paciente", conclui o texto.
Com mais de 15.000 médicos e 7 milhões de clientes, a operadora atua hoje em todo o país, com mais de 250 estabelecimentos de saúde entre hospitais, centros de exame e clínicas.
Investigações
A operadora Hapvida entrou na mira da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) no fim de agosto em meio às denúncias crescentes contra a sua concorrente, a Prevent Senior. Na última segunda-feira, servidores da ANS cumpriram diligências na sede da Hapvida em Fortaleza e Ribeirão Preto.
Conforme a agência, as ações tinham como objetivo o "esclarecimento a respeito das denúncias sobre cerceamento ao exercício da atividade médica aos prestadores vinculados à rede própria da operadora, e sobre a assinatura de termo de consentimento, pelos beneficiários atendidos na rede própria, para a prescrição do chamado 'kit Covid'".
O plano de Saúde também é alvo de uma ação do Ministério Público do Ceará baseada na "representação formal" de um médico e na "reclamação" de uma consumidora a respeito da prescrição do kit Covid. Em abril, o MP multou a empresa em 468.333 reais por "impor, indistintamente a todos os médicos conveniados, que receitem determinados medicamentos no tratamento de pacientes com Covid-19". A empresa recorreu da multa.
A companhia também já foi citada na CPI da Pandemia, que tem aprofundado as investigações contra a Prevent Senior. Em depoimento, o diretor executivo da Prevent Pedro Batista foi questionado sobre um dos slogans da empresa transmitido aos médicos, "obediência e lealdade". Ele respondeu que a mensagem fazia parte do lema de outro diretor da Prevent que "saiu para ir para a concorrente". Segundo Pedro, tratava-se de Anderson Nascimento, que hoje é diretor da Hapvida.
— Já tem uma outra que deve ser investigada também, a Hapvida — comentou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), na ocasião.
Fundada em Fortaleza (CE) em 1979 e listada na Bolsa de Valores desde 2018, a Hapvida é uma das maiores operadoras do setor com forte atuação no estados do Ceará, Pernambuco e Bahia. A empresa pertence à família Pinheiro que figura na lista de bilionários da Forbes como uma das famílias mais ricas do país. Segundo a revista norte-americana, o fundador da companhia, Candido Pinheiro Koren de Lima, tem uma fortuna avaliada em 3,7 bilhões de dólares (19,8 bilhões de reais, em valores atuais). Em abril de 2021, o dono da Hapvida participou de um encontro em São Paulo entre empresários e o presidente Jair Bolsonaro.
Mensagens, áudios e relatos indicam pressão da Hapvida para médicos prescreverem 'kit covid', tratamento comprovadamente ineficaz - Jornal O Globo
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