BRASÍLIA - A operadora de saúde Hapvida, que tem a maior presença nacional nas regiões Norte e Nordeste, é acusada de pressionar médicos para cumprirem metas de prescrição de “kit covid” para pacientes mesmo com a ineficácia comprovada dos medicamentos receitados para Covid-19. Mensagens, áudio e relatos revelados pelo GLOBO na sexta-feira mostraram que as intimidações envolviam orientações diretas para “fazer o convencimento” de pacientes para o uso de cloroquina. Agora, um ex-funcionário da companhia, o médico Felipe Peixoto Nobre, detalhou à reportagem como ocorria o que classifica como “assédio” para receitar tratamento precoce, com direito a uma lista de médicos considerados “ofensores” e ameaças de demissão.
Segundo o relato do médico, a empresa tampouco fazia questão de informar os riscos do uso de medicamentos como cloroquina e se recusava, nos primeiros meses da pandemia, a fazer testes para detecção do coronavírus em pacientes.
— Éramos vistos como inimigos e marcados com uma bandeira vermelha. Recebi quatro visitas no ambulatório do médico-líder em menos de um mês. Me disseram que eu corria o risco de ser desligado do plano, caso eu não prescrevesse o “kit covid”. A chefia sabia exatamente quem prescrevia ou não, porque estavam fazendo auditoria nos prontuários, um absurdo total — disse Nobre ao GLOBO.
A defesa do “kit covid”, mesmo após sua ineficácia ser comprovada, é uma das principais acusações contra o governo Jair Bolsonaro na CPI do Senado. O presidente ainda continua defendendo o chamado “tratamento precoce”, como apregoou em seu discurso na última Assembleia Geral da ONU, em Nova York, na contramão da ciência.
— Não interessava se o paciente sabia ou não dos riscos, a orientação era: tem que passar e não cabe discussão. Eu saí em maio de 2020, mas soube por colegas que eles continuaram fazendo isso até março deste ano — afirmou Nobre.
O médico ainda relatou que a operadora se recusava a fazer testes de Covid-19 em pacientes suspeitos e que a falta de triagem inicial acabou “gerando ainda mais a contaminação do ambiente”.
— O Ministério da Saúde havia baixado orientação de testar todo (caso) suspeito, mas o plano não seguiu isso. Recebi várias negativas de exames pedidos. Me lembro de ao menos dois casos: um de uma senhora de idade com comorbidades e outro de uma enfermeira que trabalhava no hospital, as duas com sintomas de gripe. Me disseram que o teste era só para pacientes com indicação de internação — relatou.
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Em nota enviada ontem ao GLOBO, a Hapvida afirmou que a fase inicial da pandemia foi marcada por “incertezas”. “No passado, havia um entendimento que a hidroxicloroquina poderia trazer benefícios aos pacientes. No melhor intuito de oferecer todas as possibilidades aos nossos usuários, houve uma adesão relevante da nossa rede, que nunca correspondeu à maioria das prescrições”, diz a nota.
Sobre a pressão exercida sobre os médicos para que receitassem o “kit covid” para os pacientes, a empresa afirmou que a prescrição da cloroquina ocorria “sempre durante consulta, de comum acordo entre médico e paciente”, e que “respeita a autonomia e a soberania médica”. A operadora também declarou que a adoção do medicamento foi “sendo reduzida de forma constante e acentuada”, e que a prática teria deixado de ocorrer “há meses”.
O médico Felipe Peixoto Nobre trabalhou de janeiro a maio de 2020 no hospital Antônio Prudente, localizado em Fortaleza, uma das unidades da Hapvida para Covid-19. Após as pressões que afirma ter sofrido, Nobre disse ter denunciado o caso primeiramente ao Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremed), que segundo ele, não avançou na apuração.
Na mira da CPI da Covid
O médico se tornou uma das principais testemunhas contra a empresa numa investigação do Ministério Público do Ceará (MP-CE). Com base em seu depoimento e em outros elementos apurados no processo, o MP decidiu multar a Hapvida em R$ 468,3 mil em abril deste ano. Em setembro, o material foi remetido à CPI da Covid no Senado.
A Hapvida recorreu da multa em maio e ainda aguarda o julgamento da ação. Em sua defesa, a operadora de saúde alegou que não haveria provas de que obrigava seus médicos a prescreverem cloroquina, que o autor das denúncias trabalhou por pouco tempo na rede e que fez uma “denúncia solitária”.
“Acreditar na estória contada pelo denunciante implica admitir que uma das maiores operadores de planos de assistência à saúde do país dispensaria esforços e recursos em meio a uma guerra pandêmica, apenas para perseguir médicos que não receitavam cloroquina”, diz a defesa da companhia.
O caso da Hapvida ganhou notoriedade após a sua concorrente, a Prevent Senior, mais forte na região Sudeste, entrar na mira da CPI da Covid sob acusação de pressionar médicos a receitarem o “kit covid”. No sábado, o vice-presidente da comissão, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) publicou no Twitter que o “Hapvida é mais um caso que a CPI terá que investigar”.
Caso Hapvida: Médico detalha assédio por cloroquina em operadora e recusa a fazer testes de Covid-19 - O Globo
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