Há pouco mais de 15 dias, o gastroenterologista Eduardo Guimarães Hourneaux de Moura usou um método inovador para resolver o problema de uma senhora de 75 anos. Ela, como praticamente um em cada três adultos no Brasil, amargava uma condição, no mínimo, ardida: o refluxo esofágico.
Só de ouvir esse nome, a gente já pensa em azia — e essa queimação subindo da boca do estômago na direção da garganta é, de fato, um de seus sintomas mais comuns. Mas há outras complicações perigosas.
Mais do que ser um mal-estar, o refluxo pode se tornar uma doença e irá precisar de tratamento. Na maioria das vezes, com bons remédios. O problema é que, para uma parcela dos pacientes, eles não conseguirão apagar o incêndio. Ao menos, não completamente.
Até então, a alternativa era partir para uma cirurgia, realizada de maneira convencional ou por laparoscopia. "Imagine operar todo esse contingente!", pondera o médico, que há doze anos é o diretor do Serviço de Endoscopia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Mas no Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, onde também coordena a endoscopia, ele não fez um único corte, nem furou a paciente para passar seus instrumentos. Em vez disso, usou um endoscópio acoplado a um equipamento especial que, introduzido pela boca, reconstruiu a válvula na passagem do esôfago para o estômago.
Escancarada, ela estava permitindo que o conteúdo gástrico — as refeições, os líquidos ingeridos, os sucos extremamente ácidos da digestão, enfim, tudo o que estivesse ali — desafiasse a gravidade, pegando o caminho de volta. Para o esôfago, despreparado para tanta acidez, esse retorno só pode causar uma baita irritação.
O novo procedimento — que, aliás, foi muito bem sucedido — se chama fundoplicatura endoscópica. Ou, como alguns preferem, TIF (sigla do inglês "trans-oral incionless fondoplication") "Ela já vinha sendo tentada desde o início dos anos 2000, mas com técnicas que não deram muito certo", explica o médico.
Já a técnica que aterrissa no hospital paulistano soma uma boa quantidade de trabalhos científicos provando seus resultados. "Ela é uma novidade no Brasil", conta Eduardo de Moura. "Mas, nos Estados Unidos e na Europa, é realizada com êxito há dez anos."
Por que o alimento volta
Corredor para tudo o que engolimos, atravessando o tórax para ligar a faringe, na garganta, ao estômago, o esôfago tem um esfíncter no final de seu trajeto. "Trata-se de uma válvula que se abre para a comida passar quando a deglutimos e que se fecha em seguida", descreve o gastroenterologista.
Se a pessoa tem alterações nesse esfíncter inferior, esse abre-e-fecha sai prejudicado. E existe gente com a famosa hérnia de hiato. Eduardo de Moura explica: "O diafragma é o músculo que separa o tórax do abdomen, E tem uma espécie de furo no meio por onde passa o esôfago. Por sua vez, normalmente a área de transição do esôfago para o estômago coincide com essa passagem pelo músculo. Então, podemos dizer que o esfíncter não barra os alimentos totalmente sozinho. Há uma ajuda, uma espécie de pinçamento feito pelo diafragma".
Só que, quando não existe a tal coincidência e o esfíncter não fica nesse ponto exato, é o fim do auxílio extra. Os alimentos irão retornar com maior facilidade e, mais do que isso, o orifício por onde o esôfago atravessa o diafragma pode até se alargar com a subida do próprio estômago.
Isso mesmo: o estômago pode invadir parcialmente o tórax e, em casos assim, a novidade da fundoplicatura endoscópica não vai funcionar. "Só mesmo a cirurgia para resolver uma situação dessas", esclarece o médico.
Isso também faz queimar
Existem mais fatores que favorecem o refluxo. Um deles é ingerir muito café, chá preto ou mate, outras bebidas cafeinadas. Aliás, bebidas gasosas e alcoólicas entram nesse rol. Cair de boca no chocolate ou no molho de tomate, idem. "Esses alimentos e bebidas contêm substâncias que acabam relaxando o esfíncter inferior do estômago", justifica Eduardo de Moura.
As bebidas gasosas têm ainda outro componente: ajudam a expandir o estômago, o que também acontece quando a gente come demais — e piora se, depois de se fartar à mesa, resolve tirar uma soneca. A posição deitada será meio caminho andado — caminho de volta, bem entendido.
Finalmente, é fator de risco tudo o que aumenta a pressão dentro do abdômen. Em geral, a pressão interna do tórax e a abdominal são iguais. Se a da barriga aumenta, tudo tenderá a subir, na tentativa de reestabelecer o equilíbrio.
"A obesidade faz isso e seu crescimento na população é uma das explicações por que estamos vendo mais e mais casos de doença do refluxo esofágico nos dias atuais", nota o médico.
Portanto, um aviso do doutor: "Não adianta eu fazer esse novo procedimento em um indivíduo com excesso de peso que não está disposto a emagrecer. Eu vou reconfigurar a válvula, mas não vou tratar a doença de base, que está causando aquilo", justifica. Daí, o risco de o problema voltar é grande.
Além da azia
Azia e regurgitação — aquela sensação de o alimento retornar — são, de longe, os sintomas mais predominantes. Muitas vezes, a irritação na mucosa do esôfago é tão forte que a pessoa relata uma dor torácica intensa, confundindo-a com angina. Acha está infartando. Nessas horas, é melhor mesmo correr até um pronto-socorro para ver o que é. Vai que,,,
O problema é que essa irritação, a esofagite, é capaz de criar complicações. "Podem surgir úlceras ou, então, o que chamamos de esôfago de Barret", diz Eduardo de Moura. Nesse caso, de tanto ser provocada, a mucosa desse órgão muda e fica tal e qual a do estômago, na tentativa de suportar tanta acidez.
"O paciente até deixa de sentir sintomas graves e acha que o problema melhorou por conta própria", observa o médico. Lego engano. O conteúdo do estômago continua retornando e ele é que não sente isso por causa da mucosa do esôfago modificada.
O problema é que essa modificação favorece demais o câncer nesse órgão, o que é motivo de sobra para alguém procurar uma saída — cirúrgica ou, se for o caso, a da fundoplicatura endoscópica.
E tem mais. De acordo com Eduardo de Moura, cerca de 15% das pessoas com refluxo apresentam sintomas fora do esôfago. O conteúdo gástrico pode retornar tanto, mas tanto, a ponto de provocar laringites ou até mesmo — pasme! — otites. Sim, lembre-se que há um canal ligando a garganta ao ouvido.
"Quem tem refluxo pode também viver com uma tosse seca e corre o risco até de aspirar esse alimento que volta, provocando uma pneumonia", informa o médico.
Como é o novo procedimento
Para se submeter à nova fundoplicatura, a pessoa precisa de anestesia geral. "Mas são drogas de curta duração, porque todo o procedimento leva apenas uns 45 minutos", esclarece Eduardo de Moura.
Ele, primeiro, introduz o endoscópio para uma última checagem, conferindo se não existe um hiato muito alargado, que seria indicação cirúrgica. Se tudo está certo, na sequência entra o equipamento da TIF, feito um tubo com a ponta articulada. Ao chegar no estômago, essa articulação faz uma curva e assume o formato de um anzol. "É que preciso direcionar os movimentos olhando de baixo para cima", explica o doutor.
Seus olhos são a câmera, bem ali na ponta do instrumento, o qual também tem um braço que, nesse instante, se abre. Então, uma pecinha dele penetra em um ponto específico — "se fosse um relógio, seria onde estaria marcando 11 horas", descreve o médico — e é como se o puxasse para baixo. Parece içar a parede do esôfago para fazer uma dobra, amarrada logo em seguida, quando o dispositivo solta dois prendedores de plástico.
Isso é repetido no local onde o "relógio" marcaria 12, 13, 17 e 7 horas, respectivamente, deixando 20 desses prendedores. A parede do esôfago, assim dobrada e grampeada, forma a nova válvula.
Em duas ou três horas, a pessoa irá para casa. "São três dias de dieta líquida e mais uns sete ou dez de dieta pastosa." Depois disso, vida normal e sem queimação.
Claro que não é todo mundo que se beneficiará com a novidade. Vale repetir que essa fundoplicatura não é indicada para aqueles com hérnia de hiato, nem com problemas de motilidade do esôfago. "Ela é para indivíduos que, se deixam de tomar remédio para refluxo um dia, já passam mal, mas que também não têm complicações a ponto de a gente sugerir que sejam operados", resume Eduardo de Moura. "Eu diria que a fundoplicatura entra em um nicho entre o tratamento clínico e o cirúrgico."
Cerca de 40% das pessoas com refluxo esofágico se encaixam nesse perfil e, após a fundoplicatura, três em cada quatro deixam os remédios de lado. O restante vê diminuir bastante a sua necessidade. Aproveitando, que fique o recado: jamais saia se automedicando ao sentir azia. Isso só irá mascarar a eventual gravidade do problema e, aí sim, você poderá ver o que é fogo.
Refluxo causa mais do que azia. E, agora, há um novo jeito de tratá-lo - VivaBem
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