SÃO PAULO — Nos últimos dias, uma grande mobilização popular se formou no país entre os pacientes com câncer. O objetivo é derrubar o recente veto que o presidente Jair Bolsonaro impôs ao projeto de lei que obriga os planos de saúde a pagarem os remédios orais contra a doença. Em poucos dias, um abaixo-assinado liderado Instituto Vencer o Câncer arregimentou 145 mil assinaturas colhidas pela plataforma a Change.org. “A liberação salvaria a vida de 50 mil pessoas anualmente, já que essas medicações são responsáveis por 70% dos tratamentos oncológicos”, diz o oncologista Fernando Maluf, dos hospitais Beneficência Portuguesa e do Albert Einstein, em São Paulo, idealizador do projeto. A seguir, Maluf detalha o impacto da ausência desse tipo de droga no tratamento dos tumores e fala dos tratamentos que chegarão em um prazo curto de tempo e transformarão o perfil da doença no mundo.
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Por que os remédios orais são tão importantes no tratamento do câncer?
Sete em cada dez remédios oncológicos são orais. E menos de 5% das farmacêuticas produzem um mesmo medicamento em duas versões, oral e injetável. Significa que estamos sendo privados de mais da metade das medicações disponíveis mundialmente. Essas terapias orais foram criadas para quase todo tipo de tumor. O veto ao projeto de lei que facilita o acesso aos doentes é um erro capaz de ceifar milhares de vida por ano, entre crianças, adolescentes e adultos.
Quais são os obstáculos para eles entrarem no Brasil?
A liberação dos orais pouparia a vida de 50 mil pessoas ao ano no país. Não estou nem me referindo aqui ao Sistema Único de Saúde, um cenário muito mais abrangente e complexo. Falo dos que têm acesso a planos de saúde. Muitas pessoas não sabem do processo de autorização dos remédios orais, completamente diferente em relação aos intravenosos. Quando uma droga é desenvolvida, a empresa farmacêutica submete o estudo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No caso dos remédios intravenosos para câncer, assim que a Anvisa libera, eles ficam disponíveis para o uso de pacientes que tenham convênio médico. Só que para as medicações orais há mais uma etapa, eles têm de passar por uma segunda aprovação, feita pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Esse aval pode levar até três anos para ocorrer. Ou seja, para muitos doentes, não dá mais tempo para receber o tratamento. São remédios caros, que custam de 5 mil a 30 mil reais ao mês, pouquíssimas pessoas podem comprá-los. Não existe isso em lugar nenhum no mundo, só no Brasil. Essa segunda etapa não é baseada em nenhum parâmetro médico. O projeto de lei retira a necessidade de existir essa segunda lista de aprovação. A Anvisa é a responsável pela liberação de remédios, não faz sentido essa burocracia.
Mesmo com os avanços nos conhecimentos da doença, o câncer é ainda a segunda causa de morte no mundo. A medicina um dia vai vencer essa batalha?
As últimas descobertas nos fizeram ver a doença de uma outra forma e justificam o fato da incidência ser cada vez maior. Pelo menos a metade dos tumores está relacionada ao estilo de vida. É muita coisa. De 10% a 15% estão associados à genética e o restante a uma série de fatores, incluindo infecções, como hepatite e HPV. Um dos maiores impactos dos maus hábitos está na má alimentação – consumo exagerado de enlatados, embutidos e gorduras, por exemplo. Uma dieta desregrada pode ter o mesmo peso que o cigarro, para você ter uma ideia. Defendo inclusive a ideia de que os alimentos que estimulam o surgimento do câncer sejam vendidos em embalagens com o alerta de que são nocivos, assim como se faz com o cigarro. Idem para o álcool, outro fator de risco. Comprar uma pinga com uma pessoa morrendo no rótulo inibiria muita gente. O sedentarismo influencia também. A atividade física é protetora, assim como os bons alimentos, como a cúrcuma, o tomate e o chá verde.
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O que devemos esperar de novidades nos tratamentos em um prazo curto de tempo?
Eu diria que muito brevemente, em no máximo em dois ou três anos, o perfil da doença será outro. Teremos uma revolução nos tratamentos do câncer. Há pelo menos duas novidades que me entusiasmam muito. Uma delas são os testes moleculares, os biomarcadores, já disponíveis para alguns tumores, mas que se tornarão ainda mais sofisticados. Como se fosse uma roupa feita por um alfaiate, trata-se de um recurso que permite identificar o câncer de forma individual, com o rastreamento do subtipo do tumor que acomete o doente. Isso torna o tratamento mais preciso, eficaz. Ele vai também servir para avaliar um paciente que tenha se submetido a tratamentos, se ele está ou não de fato curado, e eliminar muitas vezes os infinitos exames que hoje são feitos nessa fase. Esses biomarcadores podem, inclusive, definir que uma pessoa não precisa ser tratada. A depender do tipo do câncer, como muitos de próstata, a melhor opção é essa mesma, não tratar. Apenas observar por exames se a doença evolui ou não e descartar terapias desnecessárias ou inefetivas. Muito em breve teremos também uma sorte de remédios, mais especificamente de anticorpos, ligados a drogas que colam diretamente no tumor e liberam o remédio dentro das células doentes.
Há novidades tão expressivas na área dos diagnósticos?
Teremos dentro desse prazo testes genéticos que rastreiam o câncer cinco anos antes de ele atingir os órgãos. Ou seja, poderemos tratar a doença antes de ela se manifestar pelos exames clínicos convencionais.
O que falta para se chegar à cura total dos cânceres?
Nos últimos dez anos evoluímos drasticamente. Hoje, cerca de 70% dos tumores rastreados no início são curados. A taxa com o câncer de próstata chega a 90%. E com os cânceres avançados, por volta de 40%. Não diria que um dia a doença metastática será erradicada em todos os casos, mas certamente será crônica. Ou seja, conviveremos com ela sem que nos mate.
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Algum tipo de câncer um dia será erradicado?
O câncer de colo de útero e encaixa mais perfeitamente nesse cenário. Pelo simples fato de que existe uma vacina para preveni-lo, que é a do HPV. O vírus é transmitido principalmente pela relação sexual e é o principal causador desses dois tumores. Defendo a tese, inclusive, de que a vacina deveria ser dada nas escolas. A faixa correta da imunização é entre os 9 e 13 anos de idade. E aqui surge um problema. O imunizante é cercado de preconceitos, infelizmente. Vejo relatos de pais com medo de que a vacina influencie de alguma forma vida sexual de seus filhos ou provoque efeitos colaterais. Vacinação associada a rastreamento em massa das doenças e o exame de Papanicolau certamente erradicariam esse tumor que ainda é tão incidente.
A pandemia afetou muito o perfil da doença?
O medo da Covid-19 colocou todas as outras doenças em segundo plano. No caso do câncer o impacto foi brutal. No ano passado especialmente, quando ainda não tínhamos vacinas, o cenário foi pior. As pessoas ficaram com medo de ir ao hospital, muitos descontinuaram os tratamentos e os serviços de check-up foram esvaziados. Estima-se que a mortalidade por câncer tenha crescido pelo menos 20% globalmente. Mas as coisas já estão entrando nos eixos.
‘Em três anos o tratamento do câncer viverá uma revolução’, diz oncologista - Jornal O Globo
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